A plateia parece estar com o cio. Lotação esgotada. São três mil pessoas
em pé, mais ou menos uniformemente divididas entre homens e mulheres. A
maior parte parece ainda não ter chegado aos 25 anos, mas há também
senhores com mais de 60. E adolescentes de 15, 16. É quinta-feira, 5 de Julho, estou no Ginásio do Sesc de Santos (SP). Cada vez que o artista
lá no palco, passeando pelos versos de suas novas e antigas canções,
atravessa uma palavra carregada de alguma carga sexual, o público reage
com gritinhos lascivos. Todos ao mesmo tempo, em uníssono, como se
também tivessem ensaiado.
Estamos em plena turnê de Cê, o álbum “roqueiro” de Caetano Veloso.
Álbum “roqueiro”? Se esse rótulo não é abrangente em medida suficiente
para definir a sonoridade de Cê, muito ele pode dizer a respeito do
conteúdo poético do disco (e desse show que dele se originou), tomado
principalmente por sexo e ódio (ou seu par perfeito, o amor). Pode
também explicar muito sobre esse reflorescimento sexual à volta de
Caetano – o artista, o homem – que, neste mês de agosto, completou 65
anos.
“O Caetano está em uma fase meio Beatles. Tem rolado um assédio,
uma loucurinha”, comenta o guitarrista Pedro Sá, o mais velho dos três
jovens músicos que dividem o palco com o cantor. “Nas outras turnês que
fiz com ele sempre teve fã, gente que assediava, que chegava, que queria
falar. Mas agora, além disso, tem um frisson, um faniquitozinho. Mulher
que agarra, que pega, que quer tirar a roupa, que quer comer. Que perde
a linha mesmo”, conta.
Não é à toa. Cê é o trabalho no qual Caetano mais se expõe
sexualmente em toda sua carreira. Se não isso, desde pelo menos o começo
da década de 1980. “Desde o [disco] que tem ‘Vera Gata’, eu acho”,
tenta pontuar o próprio artista. Composta para Vera Zimmerman, a canção a
que ele se refere está no álbum Outras Palavras (1981) e descreve a
história, imagina-se que real, de sua “rápida transação” (como o próprio
diz na letra) com a atriz. Sim, estamos falando de sexo. Em Cê, com
Caetano na casa dos 60, a transação não precisa ser tão rápida. Em
alguns momentos chega a ser delicada, minuciosa, muito mais poética –
mas nem por isso menos erótica. Irmã caçula de “Vera Gata”, “Um Sonho”
foi composta para Luana Piovani e descreve a história, não
necessariamente real (principalmente se levarmos em conta o significado
onírico de seu título), de seu “malho” (como o próprio diz na letra) com
a atriz.
Enquanto mostra a canção no palco, Caetano desenha com o
gestual do corpo uma relação sexual inteira. “Sexo é um assunto central,
um absoluto – não um tema entre outros. Para mim, para a minha vida,
essa é a importância que o sexo sempre teve. Não tem nada a ver com ser
atleta sexual, nem obcecado por sexo. Pelo contrário: reconhecendo que é
um absoluto, o sexo basta que se dê. É muito simples. Porque é o que é.
Não precisa muita coisa. Tendo aquele negócio, pronto. Rolando,
chegando lá, já é importante”, avalia.
O artista diz não saber detectar diferenças entre o ato de criação de
um disco “sexual” quando ainda se está na casa dos 30 anos e fazê-lo
agora, aos mais de 60. E explica suas razões para recorrer ao tema com
tanta sede neste momento.
“Queria criar uma banda de rock que tivesse um
som próprio, que desse um toque relevante para o panorama de criação de
rock no Brasil do ponto de vista sonoro e estilístico. Timbrístico,
também. E isso se deu. Nesse ponto, acho que fomos 100% bem-sucedidos”,
afirma. “E precisava fazer um repertório que se adequasse a isso. O rock
tem, desde o princípio, esse componente sexual quase como tema central –
mesmo quando não é explicitado. Então, tendi a explicitá-lo em algumas
letras. Gostava de estar fazendo canções em que esse tema aparecesse de
uma maneira direta e intensa, com poucas informações, poucas imagens,
poucas palavras. Gostava de fazer assim para este disco. Acho que a
razão é mais essa”, reconhece.
Uma peça importante do mosaico sexual de Cê acabou não entrando no
repertório do disco porque não estava terminada na época das gravações,
mas entrou no roteiro do show. “Amor Mais que Discreto” foi composta a
partir de “Ilusão à Toa”, clássico de Johnny Alf (que Caetano, aliás,
também canta no show como introdução à sua), e aprofunda o contexto
homoerótico esboçado em “Odeio”.
“É linda! Essa daí é mesmo gay. Porque
ela fala de ‘o amante do amante’. Eu adorei chegar nessa expressão
porque não fica duvidoso, está explícito: é um cara que é, ou pode ser,
ou desejaria ser, amante de outro cara. Eu tinha falado com os meninos,
até brincando, que o Cê tem muita mulher”, ri.
As duas faixas, “Odeio” e “Amor Mais que Discreto”, abordam o amor
(ou o sexo, simplesmente – ou a iminência de uma dessas duas coisas, ou
das duas) entre dois homens: um velho e um menino.
“Sou velho, então já
dá para pensar nessa perspectiva”, diz o compositor. “Aquele modelo
grego do homem com o adolescente é um arquétipo na cabeça da gente. E
eu, no texto, gosto muito desse momento que diz ‘eu sou um velho, mas
somos dois meninos’, que é diferente da nossa moral convencional cristã
burguesa. E é diferente também do modelo grego, em que [o sexo entre um
homem adulto e um adolescente] era quase que um tipo especial de
heterossexualidade. [Em ‘Amor Mais que Discreto’] são dois caras
brincando, dois caras curtindo o sexo deles, um com o outro.”
Caetano
rejeita inteiramente a leitura comum de que a temática gay, uma
constante em sua obra desde o início – seja na poética, no discurso ou
no comportamento – tenha entrado em cena simplesmente para provocar.
“É
um tema meu. Não entro em ambiente nenhum sem meus temas principais. Não
iria deixar isso de fora”, afirma. “Independentemente de ser ou não
relevante para todas as pessoas, a mim esse tema sempre interessou.”
Texto publicado originalmente na edição 11 da Rolling Stone Brasil, agosto/2007.
Por: Marcus Preto