O filme de estreia de Bill Pohlad é uma
brilhante biografia do génio musical dos Beach Boys, Brian Wilson, interpretado
por dois actores em duas épocas diferentes da sua vida: Paul Dano e John Cusack
Era uma vez um rapaz chamado Brian Wilson
que ouvia sons dentro da cabeça, cacofonias inexplicáveis. Essa massa sonora
era transformada nas irresistíveis e esfusiantes canções “praia-surf-e-garotas”
dos Beach Boys. Mas o rapaz não se queria ficar por aí. Queria fazer música
mais “séria”, queria ir até aos limites da melodia, da harmonia, das letras e
fazer combinações nunca ouvidas entre elas. Queria tocar o estúdio de gravação
como se fosse um instrumento musical, incorporar nas canções os latidos dos
seus cães, os deslizes dos músicos, as conversas gravadas durante os ensaios ou
nos intervalos. Tudo isto perante a perplexidade ou a oposição dos outros
membros da banda. Mesmo assim, o rapaz produziu obras-primas, “sinfonias de
bolso” como “Good Vibrations”, “God Only Knows”, e o álbum “Pet Sounds”.
E depois de um disco experimental que foi
para a gaveta, “Smile”, o rapaz soçobrou às drogas e a uma doença mental
incorrectamente diagnosticada. Largou a música, passou três anos fechado no seu
quarto e ficou sob tratamento, e sob a tutela legal, de um sinistro psicólogo e
psicoterapeuta, Eugene Landy, que o encharcou em medicamentos e manteve mais
vigiado do que um prisioneiro político.
Tudo parecia correr mal para o génio
musical, quando foi salvo por uma ex-modelo e vendedora de automóveis, Melinda
Ledbetter. Com a ajuda da família, tirou-o das garras de Landy, devolvendo-lhe
a confiança e a autonomia, e casou com ele. Tiveram cinco filhos e o rapaz
voltou a compor e a tocar.
A vida do líder dos Beach Boys podia ter
dado um daqueles filmes biográficos de juntar por números e puxar à desgraça e
à edificação, feito por um qualquer borra-botas de Hollywood. Felizmente, o
autor de “A Força de um Génio” (“Love and Mercy”, no original), Bill Pohlad, um
produtor (de “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick, entre outros), que aqui se
estreia a realizar, além de grande fã do lendário grupo, não é desses. É por isso que estamos com os olhos (e os
ouvidos) num dos melhores filmes de sempre baseados na vida de um músico.
Escrito por Michael Allen Lerner e Oren Moverman
(co-autor de “I’m Not There”, de Todd Haynes), e com banda sonora de Atticus
Ross, habitual colaborador de Trent Raznor e David Fincher, “A Força de um
Génio” está isento das convenções, facilidades, piedades e simplificações do
género “biografia-de-génio artístico-que-não-bate-bem-da-bola”, e assenta num
conceito arriscado.
Brian Wilson é interpretado por dois
actores, cada um para uma fase da sua vida. Paul Dano na fase dos Beach Boys,
John Cusack na fase da doença e do isolamento. (Pohlad chegou a pensar num
terceiro actor, que seria Philip Seymour Hoffman, para fazer de Wilson durante
os anos de reclusão, mas acabou por desistir, e essa fase é o “ângulo morto” do
filme). E resulta? Se resulta, visual, dramática e narrativamente. E apesar da
pouca parecença física entre ambos, há ecos, sintonias, associações entre o
Wilson de Dano e o de Cusack, que o realizador usa para mostrar que tudo aquilo
por que o músico passou o transformou realmente noutra pessoa, embora tenham
ficado vasos comunicantes com o outro que ele foi.
“A Força de um Génio” é um filme de uma
enorme inteligência e delicadeza sonora e cinematográfica, na sugestão das
visões auditivas de Brian Wilson e na subsequente e como que miraculosa
tradução em música, sozinho ao piano ou em estúdio; na recriação o mais perto
possível das sessões de gravação; na forma elíptica como mostra o seu deslize
para as drogas e a queda no buraco negro da perturbação mental; e na recusa de
encharcar em melodrama ou em sensacionalismo o encontro de Wilson com a futura
mulher, e a batalha de vontades entre ela e Landry para anular o poder deste
sobre ele e devolver o músico a uma vida o mais normal possível. Bill Pohlad
dá-lhe uma qualidade visual que remete a espaços para as imagens de arquivo a
cores da utopia estival e musical da Califórnia dos anos 60, para a textura dos
“home movies”, para a pintura de David Hockney durante os anos californianos ou
para uma espécie de quase impalpável “realismo onírico” que encontramos nalguns
filmes de David Lynch.
Os actores são pouco menos que brilhantes.
O rechonchudo Paul Dano serve como uma luva no Brian Wilson de “antes”,
relutante à exposição pública e às digressões, funcionando ao som de uma música
que só ele ouve, secretamente magoado com a insensibilidade de um pai chupista
e a incompreensão dos outros Beach Boys. John Cusack em sofrimento com
silenciador no Brian Wilson de “depois”, delicado, assustadiço, frágil como um
cristal, consciente da sua situação mas incapaz de se libertar sozinho dela.
Paul Giamatti excelente num Eugene Landy de capachinho ridículo, falinhas
mansas e saboreando o seu poder totalitário de rosto benigno sobre Wilson. E
Elizabeth Banks, sem forçar qualquer nota melodramática para captar o nosso
capital de simpatia, na salvadora Melinda Ledbetter. Brian Wilson não podia
imaginar como o refrão “God only knows what I’d be without you” da canção
homónima viria a aplicar-se a ela.
E graças a “A Força de um Génio”, passamos a
ouvir a tão familiar música dos Beach Boys com outros ouvidos.
Eurico de Barros, no Observador de 16 Julho
2015
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