segunda-feira, 8 de maio de 2017

Escape Livre - Nova Lisboa, 1970


O inicio da década de 70, ali pelo planalto central de Angola, na bela cidade de Nova Lisboa, actualmente Huambo, foi época de incorporação dos mancebos, o cortar das fartas cabeleiras, e o fim de muitos conjuntos musicais que ainda não tinham acabado e acordar do sonho lindo vivido nos anos 60.

Os Beatles tinham ficado para trás, e começávamos a ouvir, Santana, Blood Sweat And Tears, Chicago em doses maciças. 
A musica passou a ser outra, e as Hofner, as Yahamaha, tinham sido substituídas pelas Mauser, G3, e outras “machines” que cuspiam fogo e chumbo. O som não era nada bonito. Mas teve que ser.

Para trás ficaram os Rebeldes, Los Pacificos, os Planetas da Cáala, os Lover´s, os Gemini e muitas outras bandas que durante muitas noites alegraram as populações de Cabinda ao Cunene.

Mas ainda tínhamos uma munição para usar. Na altura, eu o Rui Carlos e o Zé Maria Coelho, vivíamos juntos em Nova Lisboa, num apartamento, ali por cima da Saratoga. O verdadeiro selo de povoamento. Até comprámos um Volkswagen a “treias”. Cada um entrou com 10 mil angolares. Uma fortuna. E, embora fosse o único com carta de condução, o bólide, era sempre conduzido pelo Zé Grande, que nem o código sabia. Mas o tamanho dele chegava para ser eleito o condutor de serviço.
E aí, surge o convite do muito querido e saudoso velho Óscar, que tinha entre mãos o equipamento de uma banda, Os Sombras, que acabar de se desmembrar. Dos músicos tinha ficado só o filho, o Rui Óscar e o seu órgão branco…

Vai dai, juntámo-nos lá em casa, e decidimos a formação. 
Vicky na voz e guitarra, o Zé Maria Coelho, no baixo e na trompete, o Rui Carlos Estevão, na batera, o Rui Óscar, nas teclas e o Relvas no trombone. A ideia desta formação, era “atacarmos” a soul music do Otis Redding, e os temas dos Blood Sweat and Tears, Chicago e similares. 

Mas, faltava um solista. Foi então que vindo, não sei de onde nem pela mão de quem, nos aparece, o Pepe, o Ezequiel, que estava a cumprir o seu serviço militar nas transmissões ali num quartel qualquer….Maravilha das maravilhas. Grande musico, companheiro incrível das risadas e fantochadas, mas sobretudo, com um reportório renovado, já que havia chegado havia pouco tempo, do “puto”, da metrópole. Olha, era um “pula”, á maneira. E fez história entre nós. Ainda hoje, volvidos quase 50 anos, somos amigos.

Faltava o nome para a banda. 
Uma noite, ao despedir-me do Relvas á porta da garagem aonde ensaiávamos, reparei que a máquina voadora do mwadié, uma Tohatsu azul, fazia um cagaçal imenso, pois andava sempre sem escape …Literalmente andava de “Escape Livre”… ganda nome, pensei. Voltei para dentro e com o resto da malta, decidimos adoptar esse nome. E ficou.

No dia a seguir, fomos todos á Saratoga, tiraras medidas, e segundo ideia minha, encomendámos as fatiotas. Calça prêta de risca branca, camisa amarela sem colarinho, mas com umas “presilhas”, por onde passava um lenço azul com bolinhas brancas (ainda tenho esse lenço), e um casaco cinza claro com uns vivos, aba comprida, mas sem mangas…vejam a foto. Lindos, os meninos. E é claro, bota á Beatle…compradas na sapataria um pouco mais abaixo, em frente ao Hotel Bimbe.

O Rui Carlos, que sempre foi um vaidoso de primeira, aliás acho mesmo que ele era e ainda é um vaitreze, com bom gosto, achou que as botas que tínhamos comprado na sapataria eram vulgares, sem estilo, e vai dai, voltou á Saratoga e comprou umas made in england, beatles genuínas, parece que até falavam inglês. Custaram-lhe os olhos da cara. Se não me engano, entregou as economias todas desse mês. Uma fortuna…750 Angolares…
As ditas, tiveram um fim trágico. Passo a contar.
Uma das primeiras aparições publicas do Escape Livre, foi num festival YéYé, no pavilhão do Atletico.  Vieram bandas dos quatro cantos de Angola, que eram obrigadas a tocar três temas. Nós optámos pelo Hey Jude, versão do Wilson Picket, Oh Darling, dos Beatles, e o tema obrigatório.


Quem mandava no Atlético, era o velho Taborda, sempre em cima de tudo, não deixando a malta pôr o pé em ramo verde.

Sem grandes alaridos, arranjámos lá um sócio que se pôs de plantão á entrada do ringue, junto da cancela por onde entravam as equipes, que tinha a missão de “escancarar” a dita cancela, porque, sem dizer-mos nada a ninguém, tínhamos combinado fazer um entrada á Escape Livre. 
Com as nossas motos. 
Sem escape. 

Assim foram constituídas as equipes. Moto da frente, Zé Maria Coelho, e Pepe na pendura. Segunda moto, Relvas e Rui Óscar, e a fechar a comitiva o moi, com o Rui Carlos na garupa, a estilar as suas botinhas importadas…bom, será escusado dizer que a nossa entrada foi de gritos. Literalmente pusemos o pavilhão todo a gritar, á excepção do velho Taborda, que desconhecendo este aparato, corria louco atrás de nós, aos gritos….
 - Parem, parem, parem, rua, rua, rua….gargalhada geral. 

Geral não. O rui Carlos atrás de mim, chorava. Á séria. 
È que ao fazermos a nossa entrada no ringue, a sua linda botinha do pé direito, tinha sido “apanhada”, mais propriamente o elástico do cano, pelo ferrolho da cancela, e desgraça das desgraças, tragédia das tragédias, abrira-se toda…estava todinha rasgada…o Rui, aos gritos repetia o que o velho Taborda gritava…para, para, para, Vicky. E eu acelerava ainda mais, pois eramos a dupla que estava quase a ser agarrada pelo velho Taborda… 

Ao fim da segunda volta ao ringue, lá estacionámos os bólides com o publico ao rubro. 
Ocupámos as nossas posições em palco, mas o Rui Carlos inconsolável, chorava baba e ranho, e enquanto cantava o Oh Darling. soluçava de comoção a tal ponto que teve direito a uma ovação de pé. 
O pessoal acreditou que o feeling, o desespero da interpretação dele se devia á sua pura emoção de homem apaixonado…puro engano. 
Sim apaixonado estava pela bota destruída, o que o levou ás lágrimas e ao desespero…
Foi um verdadeiro espectáculo …

Infelizmente esta formação, desfez-se tragicamente passados poucos dias. Depois de um ensaio, á noite, o Relvas a caminho de casa, de noite e sem luz na Tohatsu, foi colhido mortalmente por uma camionete…nunca soubemos como e que realmente tudo se passou, mas ficámos destruídos, pela pera de um irmão muito querido.


A seguir, o Pepe, regressou á metrópole, e foi substituído pelo Rui Almeida, o calcinha de Luanda, que preencheu na perfeição a ausência do Ezequiel. 
Durou pouco tempo esta formação, porque a “tropa” chamou pelo Zé Maria, que teve guia de marcha para os Dragões de Silva Porto. O Rui Carlos, foi para o leste com a companhia 1250, se não me falha a memória, e o Rui Óscar para Luanda, com o Rui Almeida. 

Fiquei eu, sozinho, com uma série de contratos para cumprir. Não me atrapalhei, e numa semana, refiz a banda.
Entraram: para as teclas, o Jorge Sena, para a baixo o Victor Mascarenhas, para o solo o Nélito, e para a batera o Brandão.
Depois de ensaiados, lá fomos nós de malas aviadas para Moçamedes para mais um festival YéYé, aonde aconteceu um outro episódio engraçadíssimo. 

Para já, chegámos de madrugada ao centro da cidade, aonde fomos recebidos por um pinguim que tinha dado á costa…o bicho estava mesmo desorientado. Lá o devolvemos ao mar e fomos descansar. Tínhamos ficado horas numa fila imensa, no alto da serra, já que nesse dia foi aberta ao trânsito essa via rodoviária que serpenteava pela linda serra da Leba.

Á noite o espectáculo. Escape Livre, Os Palancas banda lá da terra, do Lobito vieram os Lovers, com o Rui Chaves e o Ministro, os Camuflados, banda da companhia militar que estava estacionada por lá, e não me lembro de quem mais. A Riquita, era a madrinha do festival.

Um dos temas que nós tocávamos e que fazia imenso sucesso, era o Something dos Beatles, no qual o Nélito brilhava forte com o solo que fazia, e que originalmente teria dois minutos. 
Só que naquele dia, consequência da “seruma”, do “boi” que circulava pelos camarins, oferta da gerência, o solo nunca mais acabava…aquilo era uma sinfonia sem fim …bonito empolgante, mas ele tinha que terminar o solo. 
Lá me fui chegando a ele e com ligeiros toques e alguns truques, lá consegui que o Nelito acabasse a sua intervenção. A caminho dos camarins, perguntei.

- Porra Nélito, o que é que te deu ? 
Ele com aqueles olhinhos, enevoados pelos fuminhos, foi dizendo, enquanto batia com a mão no peito….
 - Era o Jimmy brother, era o Jimmy, não era eu…
Espantado parei e perguntei
 - Qual Jimmy ?...
 - O Hendrix, brother, o Hendrix….
Grande musico, este Nelito.



De volta a Nova Lisboa, lá fizemos mais uns bailaricos, até que outros valores se levantaram, e com a separação inevitável devido ao facto de uns terem sido chamados a cumprir o serviço militar noutras paragens, o Escape Livre acabou….

Foi um tempo de magia, de crescimento enquanto músicos, e de solidificação de amizades que se mantêem. Para não esquecer. Nunca !

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