segunda-feira, 4 de março de 2019

A Resonet Futurama de George Harrison


Em 1959 o embargo britânico sobre produtos americanos ainda vigorava e marcas como Fender, Gibson, Gretsch e Rickenbacker eram impossíveis de se conseguir no Reino Unido. A maioria dos jovens guitarristas sonhava com instrumentos inalcançáveis. George Harrison, na adolescência, sonhava acordado com guitarras, desenhando-as nos cadernos da escola e estudando as capas dos discos de seus ídolos.

A Futurama era o mais próximo que, nessa época, na Grã Bretanha, um guitarrista conseguiria chegar da mais desejada guitarra da época: a Fender Stratocaster. Desde 1958 os guitarristas britânicos ficavam embevecidos a olhar para a capa de qualquer disco de Buddy Holly cobiçando a guitarra com que ele se apresentava, a futurista Fender Stratocaster, com três captadores. George Harrison era um deles.

"Se fosse como eu queria, a "Strat" (Fender Stratocaster) teria sido a minha primeira guitarra. Tinha visto a Strat de Buddy Holly na capa do álbum "Chirping Crickets" e tentei encontrar uma. Mas em Liverpool, nesses dias, a única coisa que pude encontrar que lembrasse uma Strat foi uma Futurama. Era muito difícil de tocar, as cordas ficavam a mais ou menos meia polegada da escala. Mas apesar disso ela realmente parecia algo futurista", confessou George.

Em 20 de novembro de 1959, George Harrison e Paul McCartney foram à loja de instrumentos de Frank Hessy.

"Paul estava comigo quando comprei a Futurama. Estava pendurada na parede com todas as outras guitarras e Paul ligou-a a um amplificador mas nenhum som saiu dela. Então aumentou o volume do amplificador ao máximo. A guitarra tinha três chaves oscilantes e quando acionei uma delas um poderoso "boom" saiu do amplificador e todas as outras guitarras caíram da parede. Minha mãe avaliou a compra a prazo, o que significava uma libra agora e o resto em prestações mnsais".

A Cooperativa DrevokovAnos antes, em 1953, em Blatna, Checoslováquia, hoje República Checa, a Cooperativa Drevokov - uma empresa estatal especializada em produzir lambris, móveis, cabides e outros produtos de madeira - recebia um novo gerente: Josef Ruzicka, um homem com inclinações musicais. Por sua decisão a companhia começou a experimentar a produção de instrumentos musicais e em 1954 ele e o designer Vlcek lançaram o primeiro instrumento eléctrico da empresa. Era uma guitarra estilo havaiana que ostentava a marca "Resonet". O modelo era chamado de "Akord" e a "Resonet Akord" marcou o início da manufactura de guitarras eléctricas na Checoslováquia.


Resonet foi o nome que a Drevokov usou para todos os seus instrumentos eléctricos. Apesar de ainda fazerem confusão não existe uma empresa Resonet, esse nome é só uma marca. No cartão de garantia havia a frase: "Resonet: a marca dos primeiros instrumentos electrofônicos checoslovacos".

A Resonet Grazioso a Resonet Akord foram instrumentos muito populares no ano seguinte e a Drevokov decidiu fabricar uma guitarra eléctrica, instrumento que se popularizava rapidamente. 

A inspiração para esse projecto foi uma Fender Stratocaster 1955 trazida dos EUA. Ao invés de a copiarem, os técnicos e disigneres da fábrica examinaram-na cuidadosamente e redesenharam-na completamente, tendo aprefeiçoado várias funções da Stratocaster, particularmente a parte eléctrica e o trémolo.

A nova Resonet tinha interruptores oscilantes para a selecção de captadores que permitiam sete combinações (oito se considerarmos a guitarra sem emitir som) ou seja, sete timbres diferentes. 
Este pormenor estava muito à frente da Stratocaster, que naquela época só permitia três timbres. 
Tinha ainda um controle de tom "master", que actuava em todos os captadores - a Stratocaster não tinha um controle desses para o captador da ponte. 

A pestana era uma peça totalmente inovadora integrando as guias e o apoio das cordas. Esse sistema foi muito usado por luthiers independentes nos anos 80 e ainda é utilizado por alguns. Os captadores tinham polos com ajustes individuais que não existiam na Stratocaster. O suporte do jack de saída era praticamente idêntico ao do instrumento da Fender.


O trémolo foi um projecto totalmente novo e tornou-se um mecanismo muito sofisticado. Nada disponível no mundo se aproximava da excelência da engenharia desse dispositivo. Muito mais avançado que o da Fender, pivotava em dois pilares - como seriam os Floyd Rose bem mais tarde - e tinha seis molas individualmente ajustáveis, uma para cada corda.


Uma diferença evidente estava na cabeça do braço, que apresentava tarraxas no estilo de violão clássico, com pinos grossos, distribuídas no formato "3+3" ao contrário das da Stratocaster que eram de pino fino e distribuídas no formato "6-em-linha". As maiores similitudes estão na forma de construção do braço numa só peça, sem a escala em separado e na cor escolhida para o seu acabamento.

Apesar de serem encontrados instrumentos pintados em cores sólidas como preto e vermelho, a grande maioria teve o corpo pintado em sunburst de dois tons com os braços em acabamento natural, uma combinação tradicional da Stratocaster. Ao modelo foi dado o nome de "Grazioso" que se tornou um grande sucesso, ganhando até uma medalha de ouro na "Expo 1958" em Bruxelas.

No final de 1957 a Drevokov assinou um contrato com a Selmer para distribuição de seus produtos na Grã Bretanha. As primeiras peças chegaram ostentando o nome "Grazioso" na cabeça, mas isso logo se mostrou inadequado mercadologicamente. 

Logo depois a Selmer rebatizou as guitarras com o nome Futurama que começaram a chegar sem nenhum nome inscrito na head stock. Vinham apenas com o logo "Resonet" no pick guard. Só as guitarras sunburst é que foram importados. Pelas novidades que apresentava, a Selmer promovia-as como "A Mais Avançada Guitarra Eléctrica Do Mundo", o que não fugia muito da verdade na época.

Era uma Futurama dessa primeira versão que George Harrison usava.

Apesar de George reclamar da dificuldade em a tocar, tudo indica que não era um mau instrumento e com certeza era uma guitarra muito moderna para os padrões disponíveis na Grã Bretanha na época. 

A Futurama era vendida por £57.75 (aprox. £1030 hoje), incluindo uma correia. Um estojo custava mais £6.30. Isso fazia da Futurama um instrumento muito caro numa época em que uma Hofner Club 40 custava £33.60 e uma Rosetti Solid 7 £18.90. 

Mais tarde a Futurama foi comercializada como uma linha mais económica, mas as primeiras certamente colocavam-se na faixa mais alta. Muitos guitarristas influentes da época usaram estas guitarras, entre eles Gerry Marsden do Gerry and the Pacemakers e o jovem Jimmy Page, que trocou sua Hofner Senator por uma Grazioso quando as suas habilidades guitarrísticas começaram a melhorar. E é facto que quase todas as bandas da Grã Bretanha tinham uma Futurama entre os seus instrumentos no início dos anos 60. 


Larry Wassgren, um colecionador de Wisconsin, EUA, possui uma exactamente igual à de George e conta que ela tem uma excelente sonoridade e é muito confortável de tocar.

George usou-a desde o final de Novembro de 1959 até a primeira quinzena de Julho de 1961 quando comprou a Gretsch Duo Jet. Isso cobre várias apresentações em Liverpool e as duas viagens à Hamburgo. Foi ela que George usou nas gravações em Junho de 1961 quando os Beatles acompanharam Tony Sheridan em oito canções, que foram lançadas no LP Tony Sheridan & The Beat Brothers (Os Beatles foram rebatizados por Bert Kaempfert, o produtor do disco, como "The Beat Brothers" porque a palavra "beatles" pronunciada com sotaque germânico soava muito parecida com "peedles" que é uma palavra alemã para "pênis"). Nesse dia os Beatles também gravaram "Ain't She Sweet" e "Cry For A Shadow" na qual se pode ouvir George executando o solo com a sua Futurama.

Outros instrumentos Resonet interessantes eram a guitarra lap-steel Arioso e o baixo Arco, um baixo elétrico para ser tocado como um contrabaixo acústico de orquestra. A Arioso, introduzida em 1955, tinha um captador com duas bobinas reversas - os tchecos haviam inventado o captador humbucker independentemente de Seth Lover e nem se deram conta disso! Estranhamente ele não foi desenvolvido posteriormente e nunca mais apareceu num instrumento da marca.

O Baixo Arco era um instrumento de concepção inédita na época. Tinha um formato angular, um repouso regulável para o joelho e um controle de volume na traseira do instrumento, para fácil acesso. O baixo Arco também foi importado pela Selmer como o Futurama Bass.

Outro instrumento à frente de seu tempo foi o baixo Pedro VI que aparentemente foi o primeiro baixo de seis cordas a aparecer comercialmente.

Em 1959 um novo director tomou posse na Drevokov, um homem que não se importava muito com música. Josef Ruzicka e sua equipe foram transferidos para uma nova fábrica em Hradec Kralove e posteriormente para as fábricas em Krnov e Horovice. 
Nesta época a produção estava sob a tutela da estatal CSHN (Instrumentos Musicais Tchecoslovacos) e várias marcas foram utilizadas, como Neoton, Delicia e Jolana. 
Muitas mudanças foram feitas na Futurama mas sempre no sentido de tornar mais barato o produto, acabando por comprometer a sua qualidade. 

Conta-se uma história interessante: a mudança de braço aparafusado para braço colado aconteceu não por uma busca de timbre mas sim porque eles acabarampor ficar sem parafusos.

No momento que o embargo aos produtos americanos foi levantado e as Fender, Gibson, Gretsch e Rickenbacker ficaram disponíveis na Grã Bretanha, as Futurama foram imediatamente esquecidas. Apesar disso, a fábrica continua produzindo até hoje e há inclusive um modelo Grazioso atualizado. Nos anos 80 eles até fabricaram os modelos Striker e Vanguard para a Kramer.

Hoje, com o crescente entusiasmo com coisas relacionadas aos Beatles, as Futurama têm sido alvo de um maior interesse no mercado "vintage".

Não sei se vai chegar à procura que têm os outros instrumentos mais nobres que os Beatles usaram mas, conhecendo toda a história e as inovações escondidas nela, ficamos com vontade de ter uma Futurama bem ao ao alcance das mãos.

É um capítulo honroso da história da guitarra!

Carlos Assale

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