quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Lizzie Bravo, a esperança de óculos


Lizzie Bravo, 58 anos de idade, foi retratada como “a esperança de óculos” na canção “Casa no campo”, famosa na voz de Elis Regina, e já trabalhou com grandes nomes da música brasileira, como Milton Nascimento, Zé Ramalho e Djavan. Mas, talvez, a sua maior façanha tenha sido a de dividir o microfone com John Lennon e Paul McCartney na gravação de “Across the universe”, quando tinha apenas 16 anos, nos lendários estúdios Abbey Road, em Londres.

O tema foi incluída na colectânea “No one’s gonna change our world”, no álbum “Rarities” e no segundo volume do disco “Past Masters”, dos Beatles - outra versão da música aparece no álbum "Let it be", lançado em 1970.

Em 4 de Fevereiro de 2008, exactamente 40 anos depois, a Nasa lançou a música no espaço, pela primeira vez na história da humanidade.

A então adolescente carioca não imaginava o quanto a sua vida mudaria depois de uma sessão do filme “A hard day’s night. Ao sair do cinema, ela já estava contaminada pela beatlemania. Com “Help!”,a segundo longa metragem dos Beatles,não foi diferente.

Em vez de se contentar com as fotos dos Fab Four nas páginas das revistas, a adolescente pediu aos pais uma viagem como presente,no dia em que completou os seus 15 anos, e foi para Londres em Fevereiro de 1967, sabendo que não voltaria a casa tão cedo.

“As pessoas ainda hoje não acreditam que se podia chegar perto deles”, conta Lizzie, que fazia parte de um grupo de fãs que frequentavam diariamente a porta dos estúdios da Abbey Road.
“Era um convívio diário”, diz. A nossa amizade foi sendo conquistada na base de bom comportamento até que, em Fevereiro de 1968, Lizzie e as suas amigas estavam atrás de uma porta de vidro no momento em que Paul saiu da sala e perguntou se alguém ali conseguiria sustentar uma nota aguda. A jovem, que fazia parte do coral do colégio,candidatou-se, levando com ela a sua amiga inglesa Gayleen Peese.

No estúdio estavam os quatro Beatles, o produtor George Martin, Mal Evans, Neil Aspinal, além do técnico de som e do seu ajudante. Eles precisavam de uma voz aguda para um coro de “Across the universe”.
“Foi bom nós estarmos calmas, porque senão nem teríamos gravado, eles teriam nos mandado embora do estúdio”, lembra Lizzie, que passou cerca de duas horas e meia ali e não recebeu qualquer pagamento pela sua participação no disco.
“Ficou um ambiente calmo, foi fantástico. Não tirei a minha câmera fotográfica da bolsa para fotografar, não pedi autógrafos, todas aquelas coisas que eu fazia no dia-a-dia, porque eu tive a consciência de que aquele era um momento único. Estava participando de uma gravação com os quatro Beatles ao mesmo tempo,com eles tocando ao vivo”, conta.

Uma das características do quarteto de Liverpool, segundo Lizzie, era o humor.
“Faziam muitas brincadeiras, contavam muitas anedotas. Durante a gravação, de vez em quando alguém dizia uma frase e todos os outros começava a tocar.Então aquela frase, por muito má que fosse, de repente transformava-se numa canção”, lembra.

“Eu tinha 16 anos e fiquei deslumbrada, mas só tive a noção do que realmente me acontecera, muito tempo depois. Eu cantei no mesmo microfone com o John Lennon,e depois com o Paul McCartney. Ter saído do Rio de Janeiro, onde eu morava, e ir para Londres cantar com um ídolo, é surreal. Quando ouvi a mimha voz na versão remasterizada, fiquei toda arrepiada.Não ouço Beatles a toda hora, mas quando oiço as músicas deles passa um filmezinho na minha cabeça.”
Dependendo da disponibilidade dos Fab Four, os temas das conversas com as jovens variavam.
“Quando Paul lia coisas sobre o Brasil no jornal, ele vinha, contava: ‘tem enchente no Rio de Janeiro’.”

 Os Beatles, aliás,receberam de Lizzie revistas sobre o Brasil e LPs de bossa nova, como um exemplar de “Os Sambeatles”, do Manfredo Fest Trio.
“Os Rolling Stones costumavam passar por lá antes de sair com os Beatles para a 'night'. Vi até o Brian Jones [que morreu em julho de 1969].”
Em troca de tanta dedicação, as fãs receberam do guitarrista George Harrison a canção “Apple scruffs”, que foi incluída no disco solo “All things must pass”.

Na faixa, o músico canta e toca acompanhado por Bob Dylan na harmónica. A letra diz:
“Vejo vocês aí sentadas / Quem passa olha espantado / Como se vocês não tivessem pra onde ir / Mas eles não sabem nada sobre as Apple Scruffs / Vocês estão aí há anos /
Vendo meus sorrisos e tocando minhas lágrimas / Faz tanto, tanto tempo / E eu sempre penso em vocês, minhas Apple Scruffs / Apple Scruffs, Apple Scruffs /Como eu amo vocês, como eu amo vocês”.

Lizzie explica o significado da homenagem.
“As secretárias da Apple eram muito chiques, todas produzidas, e nós era-mos muito crianças e não tinha-mos dinheiro para nos vestir-mos com aquele esmero.
Era bem evidente que elas trabalhavam do lado de dentro e nós ficava-mos do lado de fora”, conta Lizzie. “Fã é sempre visto de uma forma meio pejorativa e esse tema foi uma demonstração de muito carinho. Eles sempre foram muito atenciosos connosco.”
“É interessante pensar que existe um pouco da Penha, onde eu nasci, no catálogo dos Beatles”, observa.
“É uma adolescente Brasileira que está ali. Achei significativo termos ido para o espaço - os Beatles não foram sozinhos, eles levaram duas fãs.”

Só de Lennon, o seu favorito, Lizzie possui 16 autógrafos.
“Fui criticada por certos fãs por ter vendido algumas coisas da minha colecção, mas prefiro lembrar-me do momento.”
Para Lizzie, a separação do grupo, alguns anos depois, não a surpreendeu.
“O ambiente entre eles foi piorando até a dissolução, mas eu ainda assisti, a uma grande fase, em que eles estavam muito juntos. Depois nós começámos a perceber algo de diferente, era óbvio. Eles passaram a não ir mais juntos ao estúdio, a gravar separados, o clima mudou. Estavam todos casados, com filhos, a vida muda.Foi uma conjugação de factores. Acabou sendo positivo, porque eles terminaram no auge.”

Boa parte das memórias de Lizzie Bravo devem sair num livro, ainda sem data de lançamento, com mais de 100 fotos inéditas e trechos de seus diários de adolescente.
“São coisas muito singelas mesmo,de meninas e seus ídolos. Quando olho para as fotos penso que elas não são só minhas.”

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