domingo, 7 de novembro de 2010

Aquela batida de violão - Entrevista de Mónica Marques, a Nelson Motta, no Sintonia Fina


Lembro-me bem da primeira vez que ouvi um disco de música brasileira. Lembro-me do pickup Pioneer lá de casa, da agulha do pickup, onde eu estava proibida de mexer, e do zummmmmm que fazia antes de entrar a primeira faixa. Tinha uns oito anos e o disco era o Meus Caros Amigos do Chico Buarque.
Depois vieram os Bee Gees e os ABBA, até que entrei na idade do armário, me apaixonei perdidamente pelo namorado da minha melhor amiga e curei todas as dores de cotovelo ouvindo doses maciças de MPB: De Roberto Carlos, a Caetano Veloso. De Maria Bethânia a Gal Costa, tudo aquilo fazia doer. Por isso curava.
Mas um dia depois de um ensolarado Belenenses-Sporting, fomos fazer tempo para o pé da Torre de Belém e meu pai, bem disposto - o Sporting ganhara -pôs a tocar, no rádio do carro, O Pato, de João Gilberto... Jornalista, produtor musical e autor de vários romances, Nelson Motta escreveu uma biografia da MPB, baseada na sua própria vida: Noites Tropicais, Solos improvisações e memórias [Ed. Objetiva] e acaba de lançar, no Brasil, uma biografia de Tim Maia, Vale Tudo - O som e a fúria de Tim Maia [Ed. Objetiva]. Depois de lhe interromper o cooper matinal - instituição sagrada para os cariocas - perguntei-lhe cheia de cerimônia a quem poderia ligar para marcarmos a conversa. Ele respondeu alegre: A ninguém, você está falando com a pessoa certa! Ipanema, 14 de Março de 2008. Livraria da Travessa. No Rio comemoram-se os cinqüenta anos da Bossa Nova. Lá fora as águas de Março fechando o Verão. Durante a entrevista Nelson Motta tomou um chocolate quente e comeu bolo de laranja. Eu não comi nada, com medo de me engasgar.

- Nelson Motta, quando é que tudo virou Bossa?

Olha quando tudo virou Bossa Nova, foi o fim da Bossa Nova, na verdade. Porque a Bossa Nova surgiu como uma grande novidade no Brasil, em 58, com a gravação do João Gilberto do Chega de Saudade. Aquela batida de violão é que é a gênese da Bossa Nova. Teve a contribuição posterior do Tom Jobim, do estilo de letras do Vinicius de Moraes e de outros compositores. Mas o João Gilberto, a batida de violão dele e o jeito de combinar voz e violão ali, são a essência da Bossa Nova. Então a Bossa Nova fez tanto sucesso, que três anos depois de ter surgido tudo virou Bossa Nova: Era o carro Bossa Nova, a geladeira Bossa Nova, a televisão Bossa Nova, os publicitários adoravam e se aproveitaram do termo. Como tudo virou Bossa Nova, nada mais era Bossa Nova.
Já havia essa distinção, essa coisa da cidade partida, entre a Zona Norte e a Zona Sul, do Rio?
Claro! Havia até muito mais. Porque não tinha o Túnel Rebouças, você levava duas horas e tanto para vir da Tijuca, tinha que pegar três ônibus. Tinha que ir lá pelo centro da cidade, não tinha Aterro do Flamengo. Era um outro mundo, um subúrbio, era um outro país, diferente de Copacabana. Eles tentaram entrar, mas aqueles garotos de Copacabana eram muito fechados, metidos, como a gente diz. -Elitistas. Elitistas e intolerantes. Xiitas da Bossa Nova. Então o Roberto Carlos começou imitando o João Gilberto. Foi aí que todo o mundo notou que ele cantava muito bem. As mulheres especialmente, ficavam fascinadas com aquele olhar triste dele, aquela vozinha doce. Ele já era impressionante. Você veja, para o cara imitar o João Gilberto... Era como se você falasse: "Pô, o cara joga igual ao Pelé, se falássemos de futebol". Era parecidíssimo e ficar parecido com João Gilberto é muito difícil.
Quando é que Bethânia apareceu no Rio?
A primeira vez que ouvi Maria Bethânia foi nesse show, Opinião. Um show de oposição à ditadura militar. Ela veio substituir a Nara Leão. O show era com o Zé Keti, que era um compositor de morro e o João do Vale, um compositor nordestino. A Nara tinha ouvido a Maria Bethânia cantar lá na Bahia e chamou-a. Devia ter uns vinte anos. E da noite para o dia ela se transformou numa deusa. Um dos maiores escândalos do Rio de Janeiro foi a estréia de Maria Bethânia. De lá pra cá, ela jamais deixou de ter uma casa cheia, em todos os seus shows.
E Caetano veio com ela de Santo Amaro, nessa altura, para tomar conta?
Exatamente. Ele era o chaperon da Bethânia e ele não gostava. Achava chato. Mas, foi condição dos pais de Bethânia para ela vir.
No seu livro, Noites Tropicais, tem um capítulo intitulado, "Quem tem medo de Elis Regina", ela era isso tudo?
A Elis Regina provocava sim, no mínimo, um desconforto. Ela era ultra carismática, micro, muito baixinha, ela era do tamanho da Madonna. E como muitos baixinhos, desde Napoleão até ao Romário, ela cobrava, para compensar a sua baixa estatura. Gritava alto, era brava. Então as pessoas tinham um certo temor. Como tinham da Maria Bethânia, que sempre se impôs, mais naturalmente pela postura dela, que impõe um respeito, uma reverência. Sempre foi assim. Ela nem se esforça por fazer diferente. Já Elis tinha que gritar bastante.
Duas personalidades difíceis, então?
A Bethânia não. A Elis sim, muito complexa, mudava muito de opinião, de gosto, era muito passional.
Contraditória?
Ela era muito contraditória. Ela era uma pessoa que parecia não estar muito confortável na vida em lugar nenhum, a não ser cantando. Isso ela me disse algumas vezes até. Que ela só se sentia completamente bem - e ela gostava de sexo, de dinheiro, de poder, de glória, de filho e tudo - mas era cantando que ela ficava completamente bem.
Ela interessava-se por política?
Ela foi-se interessando. Porque houve uma época no Brasil que isso era quase obrigatório. Havia uma pressão tão grande, que havia muita gente sem o menor preparo para isso que emitia opiniões e era patético. Elis não tinha muita cultura política, não. Ela foi muito empurrada para a frente da turma. E ela tinha, também, uma culpa social de ganhar dinheiro, ser rica e esses petelhadas também botavam culpa nela. Acho que foi muito manipulada.
Elis era muito admirada pela esquerda portuguesa, pelos intelectuais de esquerda... Ela era uma intelectual?
Não. Elis era uma intuitiva, uma sentimental, uma passional. Claro, ela era inteligente, mas isso é outra coisa. Era muito interessada, teve uma vida escolar brilhante, queria ser professora. - Chico e Caetano também dividiam opiniões no Brasil, nessa altura... Por frustração política. Depois do AI 5 [Acto Institucional nº 5, que reforçou os poderes dos militares enormemente em 68] a ditadura tornou-se mais agressiva, com prisões e tortura, aí foi uma merda mesmo.Como não podiam brigar contra a ditadura, as pessoas começaram a inventar assunto. Os dois eram opositores do regime. Mas o Chico Buarque era acusado de nacionalista, retrógrado, populista. Já os fãs do Chico como não podiam jogar pedra no palácio do governo, xingar os militares, acusavam o Caetano de internacionalista, de vendido, de ser lacaio do imperialismo. Era ridículo, porque o próprio Chico e o Caetano sempre se deram bem. O Caetano adorava o Chico. Ele era fã do Chico. A estupidez dos fãs do Caetano e do Chico se igualava.
Você gosta dos dois da mesma maneira. Ou tem alturas na sua vida que você prefere um ao outro?
Sou fã dos dois, velhos e queridos amigos desde o anonimato. Acho que eles são complementares, feliz do país que pode ter dois "rivais" deste nível. Gilberto Gil uma vez falou uma coisa muito engraçada: Há várias formas de se fazer música Brasileira, eu prefiro todas. Eu acho ótimo isso: "Eu prefiro todas". A maior qualidade da música brasileira é justamente a sua diversidade. A infinidade de ritmos e gêneros. Nem nos Estados Unidos existe essa riqueza. Eu admiro a música americana, mas a música brasileira no capítulo diversidade ganha.
Depois de João Gilberto todos os cantores brasileiros passaram a cantar mais docemente, enquanto que a maioria das cantoras adotou uma postura mais masculina. Como foi isso?
É verdade. O Glauber Rocha tinha uma tese, meio de brincadeira, meio a sério - ele adorava João Gilberto, era o cantor que ele mais gostava - de que João Gilberto efeminou, sem ser no sentido pejorativo, a música brasileira. Depois do João Gilberto, que era minimalista, todos passaram a cantar mais doce, mais delicado, mais feminino: O Chico Buarque, o Caetano Veloso. João Gilberto mostrou que o volume, pelo menos na voz, não era documento para os homens. Daí que as mulheres ocuparam esse espaço do canto viril, primeiro a Maria Bethania, a Elis Regina, que eram cantoras de vozes potentes, mas também a Simone, a Alcione. É uma tradição que permanece você vê a Ana Carolina...
Quem foi o criador do termo Bossa Nova?
Bossa é um termo bem antigo, desde os anos trinta, eu acho que até antes talvez... O Noel Rosa já vinha falando em Bossa. A primeira vez que eu li essa expressão foi na contracapa do primeiro LP do João Gilberto, escrita pelo Tom Jobim, que descrevia ele como "Esse baiano Bossa Nova". Depois a história oficial, é que num show, na Hebraica aqui no Rio, em que apareceram um grupo e artistas novos: a Nara Leão, o Roberto Menescal, o apresentador não sabia como designá-los e aí os apresentou como "um grupo Bossa Nova". Diz a lenda que foi aí o primeiro registro, mas há controvérsias...
Muito erotizadas...
Porque elas geralmente são pessoas erotizadas. Além da Ana Carolina, a Zélia Duncan, a Ivete Sangalo, elas têm equipamento para serem cantoras de explosão, de Rock´roll. Já os cantores estão ali de Bossa Nova... Então é engraçado.
E João Gilberto vai continuar afastado, vendo tudo de casa?
Em parte, isso é uma sabedoria dele. Na verdade é uma característica de vida. Ele sempre foi assim, só foi ficando mais radical. Ele leva uma vida monástica. É um homem totalmente dedicado à sua música. Ele tem consciência da genialidade dele, plena consciência.
Mas ele sabe do que se passa à sua volta, é uma pessoa interessada, informada?
Claro! Ele vê televisão o dia inteiro, ele lê jornal, ele telefona pros amigos, mas sem sair. Sempre mora em apartamentos bonitos, lugares lindos no Leblon, belas vistas, andares altos...
E você continua falando com ele?
De vez em quando, sim. Isso é um estilo de vida. Ele toca violão o dia inteiro. Está sempre aperfeiçoando as músicas dele. Ele é um mestre zen! Sempre depurando e mais e mais e mais a arte dele. A prova disso é que no seu disco mais recente, Voz e Violão, ele fez questão de regravar Chega de Saudade, a música que iniciou a Bossa Nova e Desafinado, que é a canção manifesto. Se você ouvir essas gravações hoje, quarenta anos depois, elas são muito superiores às originais. Inclusive a voz dele aos setenta anos está melhor que aos vinte e oito ou trinta. Ele é um gênio da música popular, como um Mozart, ou Beethoven, apenas que ele o é na música popular. Nem o Tom Jobim é, que é um grande mestre. O João Gilberto inventou todo um mundo novo de suavidade e ritmos internos, essa dialética entre o som e o silêncio.
Dificilmente ele fará outro show?
Eu acho que ele vai fazer, sim. Ele disse que vai fazer esse ano no Carnegie Hall, de Nova Iorque. Ele ama o Carnegie Hall.
Eu vou.
E eu. É claro que eu vou! Eu acho que eu devo ser a pessoa no mundo que mais assistiu show de João Gilberto. Dei sorte. Dei muita sorte.
Que idade você tinha e o que sentiu ao ouvir pela primeira vez aquele som?
Tinha catorze anos. Senti uma coisa indescritível, porque nem gostava de música nesse tempo. Não me interessava por música, porque a música que tocava no rádio e na televisão era a música de meus pais. Eu queria coisas modernas, televisão, história em quadrinhos, literatura americana, cinema europeu. A juventude não tinha uma música brasileira. A Bossa Nova foi a música que a gente queria. Que expressava o tipo de vida que a gente levava, em Copacabana. Uma vida de praia, de romances, de leveza, que hoje poderia ter um paralelo nesses climas de surf, Jack Johnson, sabe, uma coisa meio hippie. Era esse o ambiente de Copacabana.
E então os pais da Bossa Nova foram...
A gente costuma dizer que era uma santíssima trindade. Formada pelo Tom Jobim, que era o pai; o Vinicius, a mãe e o João Gilberto o Espírito Santo (risos). Porque João foi inventor da linguagem nova, daquela batida do violão, o inspirador, a chama. O Tom Jobim seria o pai fundador já que compôs todo o cancioneiro da Bossa Nova. O João Gilberto foi, não só o grande interprete das novas Bossas Novas que o Tom Jobim criou, como ele transformou em Bossa Nova clássicos da música brasileira de compositores como Dorival Caymmi, Ary Barroso, Geraldo Pereira ou Assis Valente. Versões da era de ouro do Rádio, grandiloqüentes com outro ritmo, que João modernizou.
E a mãe Vinicius de Moraes ficava onde?
O Vinicius fez a mesma coisa, na parte das letras. Porque as letras da música brasileira, salvo raras exceções como Noel Rosa e alguns outros poetas populares, eram tipo samba exaltação, sabe, exaltavam as grandezas do Brasil. Ou então eram sambas dor de cotovelo, muito dor de corno e boleros. Era tudo muito chato aquilo, tudo muito "over." A Bossa Nova era o oposto, toda minimalista, tudo "menos", uma diferença enorme. O Vinicius transformou tudo numa linguagem mais coloquial, cheia de diminutivos, numa linguagem intimista. Vinicius era um grande poeta, com vários livros publicados. Um grande nome da poesia escrita que se passou para a música popular. Ele elevou o nível. Entrou para a bossa Nova já tinha uns quarenta anos.
Como foi a entrada dele?
Ele chamou o Tom Jobim para escrever com ele uma adaptação do Mito de Orpheu e Eurídice, para a favela carioca, isso em 56, eu acho. Se juntaram para fazer esse musical. A peça era muito chata, boba, mas as músicas lindíssimas. Aí começou uma das parcerias mais importantes da música brasileira, depois fundamental para a Bossa Nova. E o primeiro grande trabalho deles com João Gilberto foi quando, em 58, a grande cantora Elizeth Cardoso gravou um disco chamado, Canção do Amor Demais, só com canções da nova dupla, Tom e Vinicius. Em duas dessas músicas o João Gilberto foi chamado para tocar o violão. A primeira vez que aparece a tal batida da Bossa Nova é na música cantada pela Eliseth, Chega de Saudade. Não era Bossa Nova ainda, porque era só a batida. Ela ainda cantava de forma, com todo respeito, antiquada.
Fora as horas de trabalho, eles eram amigos, costumavam andar juntos?
Ah, eu acho que foi uma época movida a amizade, festinhas, porres e dramas passionais. Foi uma época chamada de Anos Dourados, no Brasil. O Rio era uma cidade maravilhosa, nesse tempo. Literalmente maravilhosa. E tudo se passava em Copacabana, que era um paraíso. Um lugar ultra charmoso, pacífico e muito cosmopolita. - Imagino. É, mas também faltava água às vezes e luz também e quando chovia inundava tudo!
Você conta que no início a Nara Leão cantava muito mal, mas que você a adorava.
Eu admirava muito a Nara Leão. Porque é fácil você se tornar numa grande cantora nascendo com a voz da Elis Regina, ou da Simone, ou da Dulce Pontes. Difícil é você se tornar uma grande cantora com a voz da Nara Leão, da Rita Lee, da Fernanda Takai... - Ou do Chico Buarque. Ou do Chico Buarque, que cantava pessimamente também, no início! Para você ver, nada como o tempo e a pratica também. Ela [Nara Leão] tinha poucos recursos vocais, mas muita sensibilidade e inteligência. Nara foi chamada "a voz mais inteligente do Brasil". Ela não era a mais bonita, mas era a mais inteligente. Ninguém escolheu melhor que ela seu próprio repertório. Tinha um talento especial para descobrir novidades. Ela lançou o Chico Buarque, o Edu Lobo, o Dori Caymmi, Sidney Miller, sei lá, o João Bosco. Uma infinidade de grandes compositores. Ali em Copacabana, no apartamento dela, muito da Bossa Nova aconteceu. -Para uma menina, Nara tinha uns pais muito liberais que deixavam todo o mundo entrar lá em casa, fazer festas. Olha, eu não sei se eram liberais. Sei que os meus também eram assim e que eu também sempre preferi que minhas filhas trouxessem o pessoal para casa, em vez de andarem soltas por aí (rs). -É. Talvez eu tenha feito essa pergunta por achar que em Portugal , a geração de meus pais não podia fazer muito isso.
E onde estava Roberto Carlos, nessa altura, fazia parte desse grupinho?
Ele tentava, tadinho! Ele tinha iniciado a carreira junto com Tim Maia, Erasmo Carlos, o Jorge Benjor, na Tijuca. No início de uma onda de Rock´Roll no Brasil, logo que apareceu Elvis Presley e tudo aquilo. Roberto Carlos se apresentava em showzinhos de Rock, na Zona Norte. Ele imitava o Elvis. Era o Elvis brasileiro. O Tim Maia era o Chubby Checker, era bem precário. Mas logo passou, porque apareceu a Bossa Nova. Então esses caras: o Roberto, o Erasmo, também, ficaram loucos pela Bossa Nova! Queriam fazer Bossa nova! Mas era difícil para eles que vinham do Rock´roll, uma coisa de três acordes! E também moravam na Tijuca, na Zona Norte.

P.S. - Mónica Marques nasceu em Lisboa em 1970. É jornalista. Formou-se em Relações Internacionais. Vive no Rio de Janeiro há sete anos, com o marido e os dois filhos. Escreve no blogue Sushi Leblon. Transa Atlântica é o seu primeiro romance.

Sem comentários: