sábado, 29 de janeiro de 2011

Victor Gomes. As sete vidas do Gato Negro


Por ser um documento importante para a história do Rock em Portugal, transcrevo esta entrevista publicada hoje no I.
Victor Gomes, será sempre um marco de referência, para todos os músicos e amantes da musica que se fazia nos anos 50 e 60, aqui em Portugal.
Ele e, sim, o Pai do Rock, em Portugal.

"Aos 17 anos Victor Gomes e dois amigos saltaram para um cargueiro atracado no porto de Lourenço Marques com destino à América. Esperavam que a sua magra dose de mantimentos (atum e pão) os aguentasse escondidos na casa das máquinas até chegarem à terra do rock''n''roll, Elvis e Marylin Monroe. Quatro dias depois a comida terminava e o navio ainda não tinha passado a costa oriental de África. Victor lidera então uma sortida nocturna à cantina do navio, mas é apanhado. Entregue à polícia da Cidade do Cabo, terminava ali a busca do sonho americano do homem que viria a ser o rei do rock, do twist e do ié-ié em Portugal - ou rei do gado na Rodésia. Mas começa uma sucessão de histórias reais de resistência, coragem e sorte. O líder dos Gatos Negros fala de cada uma das suas sete vidas e lembra a Lisboa que desaparece hoje com o fecho do Maxime, onde é cabeça de cartaz. Uma história de vida que será em breve alvo da biografia devida ("Victor Gomes - o Mais Negro dos Gatos", de José Rodrigues Cardoso) e um documentário feito por Paulo Furtado, o Legendary Tigerman.

Vida 1: Lisboa-Moçambique (1940-1963)

Lembra-se de quando ouviu rock''n''roll pela primeira vez?

Estive em Namaacha, Sul de Moçambique, no colégio interno dos Salesianos, até aos 15 anos. Costuma dizer-se que o pássaro que está na gaiola, assim que vê a porta aberta desata a voar e ninguém o apanha. Foi o que aconteceu comigo. Estive oito anos fechado, sem ver o meu pai ou a minha mãe, e quando saí fui lançado para Lourenço Marques. Ia para o cais onde atracavam os grandes navios norte-americanos, cheio de bares e marinheiros à procura de meninas. Nesses bares havia jukeboxes e a música que saía de lá era rock''n''roll. Eu lá tentava dançar aquilo.


E como começa a sua carreira?

Havia um concurso no Radioclube de Moçambique chamado "À Procura do Caloiro do Rock". A malta pressionou- -me, "ó Vítor, tens de ir, tu tens o feeling, man". Fui a pensar "seja o que deus quiser" e ganhei. Tinha 17 anos, estava lançado. Mas depois lixei-me.

O que é que aconteceu?

As pessoas vinham ter comigo e perguntavam: "ó Vítor, quando é que tu te casas?" E eu nada, nem pensar! Naquela altura namoradas não faltavam, ui [Aponta para o céu: "Posso dizer, ó tu aí em cima? Posso?"] Eu era um puto que tinha muito bom ar [Aponta para o céu outra vez: "Não me leves a mal, mas estas verdades têm de se dizer"]. Bom, mas quando menos se esperava casei. Dezoito anos e uma filha a caminho, ai meu deus...

Foi um escândalo?

Eu fiquei muito abatido e em Lourenço Marques não se falava de outra coisa: "O Victor Gomes casou!" E as minhas ex- -namoradas todas a roer os dentes, tão tristes, coitadinhas. Eu fugi.

Fugiu?

Ah, pois fugi. Fui para o Norte, para perto de Nampula, onde estava a minha mãe.

E como vivia?

Fui caçador. Matava búfalos e outros bichos grandes. Passava dias no mato, isolado. Eu sou como o pardal, preciso de andar à solta. Mas depois, em 1961, comecei a ver os perigos das independências, a descolonização que começava no Norte de África e pensei em pirar--me. Decidi voltar à vida artística.

Vai para onde?

Angola, para ganhar rodagem e cabedal. Aquilo lá tinha algum profissionalismo, em Moçambique era tudo amador. O meu empresário era o Luís Montez, pai do outro Luís Montez [da promotora Música do Coração], que é genro do Cavaco. Depois lá vim para Portugal.

Sei que foi pugilista lá em Moçambique.

Sim, mas estejam à vontade, cavalheiros [arregaça as mangas e brande os punhos], deixem-se estar que eu não faço mal [risos]. Eh pá, fiz uns combates. O que eu era mesmo bom era no hóquei, fui um grande hoquista - dos melhores de Moçambique. Também joguei futebol com o Eusébio no Sporting Clube Lourenço Marques em 58/59. Mais tarde estive no hóquei em Portugal, no Benfica. Ah, e também joguei ao berlinde, levei tanta porrada no berlinde [risos].

Estudou num colégio católico. Portava-se bem?

Ui, se portava! Andava sempre com o cabelo rapado!

Porquê?

Era assim que nos castigavam e eu portava-me mal, era muito rebelde. Não podia, e ainda não posso, com as injustiças.

Vida 2: Angola-Lisboa (1963-1967)

É a primeira estrela rock portuguesa?

Nem pensar. Quando cheguei a Portugal, em 1963, já havia o Zeca do Rock, o Joaquim Costa, o Nelo do Rock, o Joaquim Conde. Mas não cantavam o rock original, cantavam umas coisas em português. [Começa a cantar] "É fado, é fado ro-que, é fado, é fado ro-que." Eu vinha de Moçambique, onde estava mais exposto à língua. Aprendi porque vivia perto da fronteira com a Suazilândia, que na altura era dos ingleses.

Então foi o primeiro a cantar em inglês?

Isso fui. Bom, havia um, mas cantava umas baladas, o Daniel Bacelar. Mas agora o rock, o verdadeiro rock, fui eu. E fui eu que trouxe a energia do rock, a rebeldia e os blusões de cabedal pretos, à americana.

Foi chegar, ver e vencer?

Nada disso. Durante três meses fui todas as noites para o Parque Mayer. Ficava lá só a beber um cafezinho - não podia mais porque tinha de pensar na pensão de alimentos da minha mulher e filhas -, até que por sorte apareceu o João Maria Tudela e me falou de uns tipos da Trafaria, os Gatos Negros.

Foi ter com eles?

Ele disse que não eram grandes músicos, mas tinham garra e eram rebeldes. Fui logo à Trafaria, à sala dos bombeiros onde eles ensaiavam, com umas fãs à porta e tudo. Cheguei ao palco com a minha maneira de andar e o meu estilo e pedi para falar com os músicos: "Ah, sou cantor e tal, venho de Moçambique." Mandaram-me subir para o palco e cantei com eles o "Jailhouse Rock", do Elvis. Olha, foi amor à primeira vista.

E como vieram os primeiros concertos?

Tocámos num concerto de beneficência por causa de um bailarino, o Freddy, que estava doente. Fui ter com o organizador, que ,sem nos ouvir [aponta o dedo para cima de novo: "Obrigado senhor"], nos dá uma chance. Logo a seguir fui contratado pelo Vasco Morgado, o grande empresário.

O rock ''n'' roll sempre foi visto como um género rebelde . Nunca teve problemas com a PIDE?

Vou começar por dizer isto: o que hoje é o Pavilhão Atlântico era naquela altura o Pavilhão dos Desportos, agora Pavilhão Carlos Lopes. Quem enchesse aquilo, cuidado. Eu enchia sempre. Acontece que um dia, num daqueles festivais de rock e twist onde eu já nem entrava porque ganhava sempre tudo - mas era obrigado a actuar porque a malta nova queria ver-me -, o Vasco Morgado vira--se para mim e diz: "Prepara-te que vou meter os vossos instrumentos na Praça do Saldanha. Vocês vão actuar lá fora." E assim foi. Montou-se um palco lá fora e enchemos aquilo, até havia pessoas em cima das árvores, o trânsito todo parado, uma loucura. Milhares e milhares de pessoas ali no Saldanha. Se naquela altura nos Restauradores ou no Rossio meia dúzia de malta junta era expulsa pela PIDE, como é que aquilo foi possível? Eu explico.

Explique.

Antes do concerto fui chamado ao gabinete do Vasco Morgado, onde estavam três pides à minha espera. Disseram: "Vítor Gomes, o menino não vai cantar canções de protesto." Respondi, "Eu!? Eu quero é rock!" E foi assim.

No auge da fama conseguiu ganhar muito dinheiro?

Em 63 assinei contrato com o Vasco Morgado a ganhar cinco contos por mês e cada um dos Gatos Negros fazia dois contos e quinhentos. Fora as actuações que fazíamos ao fim-de-semana, que ganhávamos à parte e descontávamos mais tarde ao nosso agente - eu às vezes esquecia-me de descontar [risos]. Isso na altura era muito dinheiro. Para ter uma ideia, um médico ganharia cerca de 700 escudos por mês. E tinha um apartamento pago no Saldanha pelo Vasco Morgado. Era a máquina de fazer dinheiro dele.

Tinha uma boa vida?

Deitava-me às sete, oito da manhã, levantava-me à noite. Mas trabalhava duro. Havia duas sessões à noite no teatro da revista, com um intervalo para comer. Acha que íamos comer bifes? Não. Íamos para as tascas das Portas de Santo Antão comer passarinhos fritos e beber vinho.

E como acabavam essas noites?

Íamos para as boîtes, para o Cais do Sodré, sítios como o Texas Bar ou até casas de fados.

Cantava o fado?

Um bocado, lá à minha maneira, porque sou filho de uma fadista e a minha tia, que ainda é viva, também era. Todos os portugueses cantam o fado [começa a cantar "Só Nós Dois é Que Sabemos", de Tony de Matos] .

Fez um bom pé-de-meia?

Com 20 e tal anos? Era chapa ganha chapa gasta.

Vida 3: Artista residente no Maxime (1967)

Como era a noite na capital nos anos 60?

Ah, em Lisboa nessa altura não havia sítio nenhum na noite que não tivesse bailaricos. Estou a falar de conjuntos de baile, bandas mesmo, não era cá DJ. Veja só como era aquela zona de Lisboa naquela altura: tínhamos logo o Parque Mayer, que era aquela loucura toda de teatros e restaurantes. Tínhamos na esquina do Parque, como quem vai para o Maxime, um restaurante bom, que era o Galo, e que na cave tinha uma boîte, a Cave do Galo. Depois ao lado havia um restaurante muito grande que fechava às duas da manhã, chamado Águia - que agora é uma casa de bilhares. Depois do Maxime havia o Fontória, logo ao lado era aquele sítio do jazz, ai como se chama?, o Hot Clube. E já para não falar do Ritz, ali mais ao fundo. Bom, aquelas ruas à noite uma pessoa quase que não se podia mexer, era um mar de gente.

E como acabava a noite?

O Maxime fechava às cinco da manhã, mas antes, lá pelas quatro, abria um sítio ao lado da bilheteira do Parque Mayer chamado Cantinho dos Artistas. A essa hora iam para lá os artistas de todos os teatros e salas de espectáculo das redondezas para comer o seu bitoque e dançar com as namoradas com um conjunto a tocar. Aquilo era lindo e o Otelo nunca disse nada. E agora pronto, vão dar cabo daquilo porque querem fazer ali uns escritórios.

É um recordista de concertos naquela sala.

Eu sou o artista com mais concertos no Maxime. Desde que reabriu, em 2006, e antes disso, nas outras vidas dele. Nos anos 60, mais especificamente em 1967, estive no Maxime sete meses consecutivos como atracção principal. Foi na altura em que tinha acabado com os Gatos Negros e andava a fazer filmes - fiz três. Cantava os clássicos: Elvis, Sinatra, Tom Jones.

Vida 4: Lisboa-África (1967-1985)

Entretanto, em 67, desaparece do mapa. O que andou a fazer?

No dia 28 de Dezembro de 67 deixei Portugal. Fui a pedido da Cruz Vermelha Portuguesa e do Movimento Nacional Feminino, aquelas senhoras que durante o Ultramar escreviam cartas aos soldados, as madrinhas de guerra. Fui para Angola e Moçambique cantar para as tropas.

Porquê?

Porque a mim aquilo tocava-me. A guerra e os rapazes todos metidos naquilo. Além disso queria voltar a Moçambique porque lá as pessoas tinham vontade de rever Victor Gomes, o Rei do Rock. A ideia era ficar lá dois, três meses, e voltar à base, mas acabei por ficar.

Abandonou a vida artística?

Fui para a Rodésia [actual Zimbabué], onde montei uma quinta de criação de gado. Estive no Quénia, na África do Sul, no Botswana, na Namíbia, em todos aqueles países de Angola para baixo.

Estava lá quando o Mugabe foi para o poder e começaram os problemas.

O meu dinheiro estava no banco e os bancos eram controlados pelo Mugabe, não podia tirar de lá o que queria. Nessa altura tinha dupla nacionalidade e um passaporte zimbabueano. Felizmente consegui arranjar um outro passaporte português e comprar uma viagem de ida e volta pela TAP. Atenção, ida e volta. Ninguém sabia lá que eu ia fugir para além de uma miúda inglesa com quem eu andava e um amigo meu, o Richard. Tinha medo de ser denunciado. Ora esse passaporte tem o carimbo de saída: dia 1 de Abril de 1985.

Trouxe alguma coisa?

Andei metido no negócio das esmeraldas e ainda consegui trazer meia dúzia delas, pequenininhas mas puras. Escondi-as num fecho éclair que pus no cinto.

E como foi no aeroporto?

Despachei as malas e fui para o bar do aeroporto beber. Bebo sempre uns copos antes de andar de avião porque tremo muito - é para relaxar. Deixei-me ficar no bar até que me chamassem para o avião. Porquê? Porque eles lá na alfândega revistavam toda a gente a pente fino, até as mulheres naquelas zonas lá em baixo. Ouvi "Mr. Gomes, Mr. Gomes" nos altifalantes e despedi-me: "bye girl, bye Richard, see you again sometime" e fui para a alfândega com o passaporte português. Disse: "Vou para Portugal de férias e volto daqui a um mês. I love Zimbabwe." Eles mandam-me correr para o avião, cheios de pressa. Ainda perguntei se me iam revistar ou não mas só queriam ver-se livres de mim. Corri para o avião mas antes ainda disse: "I''ll be back, I Love Zimbabwe." Mas cá por dentro estava assim [mostra o dedo médio da mão esquerda] para eles.

Estava a salvo.

O avião estava no ar , respirei fundo e disse: "My god, I''m a poor man, but i''m a free man. Thank you."

Trouxe de lá umas feridas de guerra.

Esta mão aqui [mostra a mão esquerda] não serve para nada. Tenho os nervos presos e o braço atrofiado, tocava guitarra mas já não toco. Foi uma baionetada que levei aqui.

Porquê?

Estava a lutar na guerra da independência a defender a Rodésia como mercenário - Victor Gomes, o Rei do Rock, um mercenário! Treinava luta corpo a corpo com uma arma belga, a FN, quando uma soldada israelita me faz isto. Como estava no meio do mato tive de ser cozido a sangue frio, tudo à balda. Porra doeu que se fartou. Mas se não fosse isto que histórias tinha eu para contar?

Vida 5: Zimbabué - Lisboa e o resto da Europa (1985-1992)

Quando aterra em 85 fixa-se por cá?

Não, fui para Inglaterra, estive uns tempos na França onde pedi asilo político - eu, Vítor Gomes, o Rei do Rock, um asilado!

Durante esse tempo que andou pela Europa, o que fazia?

Cantar, mas não só. Fui soldador, profissão que aprendi no colégio. Nunca tive patrão, consegui assim uns contratos bem pagos pela Holanda, Alemanha, etc... Eu fiz tudo.

Mas em 1992 lá volta.

Sempre que vinha a Portugal de férias as pessoas vinham ter comigo a pedir-me para voltar. Lá lhes fiz a vontade.

Vida 6: Lisboa-Algarve (1992-2006)

Foi fácil arranjar trabalho depois de tantos anos parado?

Era o menino bonito daquele bar que havia ali em Belém, ao pé do espelho de água, o T-Club. Sabe onde é? Até o senhor Balsemão lá tocou bateria uma vez. Era malta da minha idade, mas a quem a vida lhes correu bem. Eram agora uns senhores de tal e tal mas nos anos 60 eram miúdos como eu era e lembravam-se de mim. Correu bem, mas agora já estou reformado.

Sei que chegou a ter uma oficina?

No Algarve, sim. Trabalhava pedra que eu ia buscar à serra e fazia trabalhos lindos de decoração. Abandonei por causa dos químicos, e porque não usava máscara, tive uma hemorragia interna.

Vida 7: Maxime (hoje)

E o que é feito dos Gatos Negros?

Têm as suas vidas. Um deles está hospitalizado aqui perto no Hospital dos Bancários, tenho de o ir lá ver. Foi gerente de um banco. Outro enforcou-se, o Manuel Aleixo, era como se fosse meu irmão. O baterista teve há uns tempos um AVC. Mas ainda durante os anos 60 os Gatos Negros iam e vinham. Uns para a tropa, outros porque se portavam mal.

Como vê este fecho?

Sinto-me triste por saber que o Maxime vai fechar. É uma oficina que vai deixar muita gente desempregada. E para mim era a melhor casa de espectáculos de Lisboa. A cidade vai ficar mais triste e a Praça da Alegria vai ficar com uma lágrima no canto do olho. Gostava que pusesse esta parte no texto, "com uma lágrima no canto do olho". Pode ser?"

No I, por Luís Leal Miranda, Publicado em 29 de Janeiro de 2011

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