quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

John Lennon, está vivo.

Feitas as devidas contas, o John Lennon que foi na história da música pop como um dos artistas mais importantes do século passado é um homem dividido em dois. Primeiro aconteceu o Lennon dos Beatles, jovem contente e inconsequente, amado por todo o planeta, quase mais popular que Jesus Cristo. Em 1970, quando os Beatles se separaram definitivamente, o caminho já estava pavimentado para o surgimento de um segundo Lennon, mais adulto, atormentado, politizado, participante, até mesmo ocasionalmente impopular.

A entidade que dividiu John Lennon em dois chama-se Yoko Ono, figura detestada por décadas pelos ditos “beatlemaníacos” como suposta causadora da dissolução, e por isso chamada de “bruxa” com intensidade suficiente para a fazer "batizar" um disco que lançou em 2007 de "Yes, I’m a Witch" (“sim, eu sou uma bruxa”). Japonesa sobrevivente ao bombardeio de Tóquio pelos Estados Unidos em 1945, Yoko imigrou para Nova York, e nos anos 60 tornou-se na artista plástica conhecida, ligada ao movimento vanguardista Fluxus. A cantora e compositora começou a ser fermentada pela convivência com Lennon, de 1966 em diante – o mesmo período em que a simbiose de John, Paul, Ringo e George se deteriorava lentamente.

O facto é que John, o menino de ouro dos Beatles, fez-se adulto nos braços de Yoko. Com a banda de rock mais festejada de todos os tempos, ele ajudou a revolucionar a música pop, a indústria do entretenimento, o comportamento juvenil, o planeta como um todo. Casado oficialmente com Yoko em 1969, começou no inicio da nova década a sua própria revolução pessoal, não por acaso sintonizada com as transformações comportamentais em curso no mundo.

Afoitos por uma nova história, John e Yoko lançaram discos gêmeos em 1970. "Yoko Ono/Plastic Ono Band" que se responsabilizava pelo lado experimental daquele cara-e-coroa, os guinchos e agressões verbais da cantora funcionando como agravante do ódio que ela já despertava nos órfãos do pop perfeito de Lennon & McCartney. "John Lennon/Plastic Ono Band" ficava com o quinhão pop-rock, embora bem mais soturno e bem menos luminoso que aquele dos tempos do yeah yeah yeah.

O disco de Lennon era palavroso, raivoso e pleno de palavras de ordem.

Em "God", lançava a mítica constatação “the dream is over” (o sonho acabou) e professava a descrença em tudo que não fosse ele próprio & Yoko – o que incluía afirmar que não acreditava na Bíblia, no tarot, em Hitler, Jesus, Kennedy, Buda, reis, Elvis, Dylan e os Beatles. Do lado oposto ao Deus de "God", estava o "Working Class Hero", o herói da classe proletária que ele próprio sabia ser. Era um manifesto de autoafirmação, amparado por uma japonesa aparentemente frágil, que já fizera uma série de abortos, e já havia tentado suicidar-se várias vezes, e que todo o mundo (menos ele) odiava.

Unido, o casal mergulhou numa jornada de auto conhecimento que se ajustou perfeitamente à voga das lutas pelos direitos civis vividas à época nos Estados Unidos. Recém-casados, convocaram a imprensa para uma lua-de-mel em público, numa cama enfeitada com dezenas de cartazes pacifistas que procuravam sublinhar os lemas “paz & amor” do movimento hippie ("Give Peace a Chance", de 1969, e "Imagine", de 1971, viraram faixas-ícone dessa linhagem).

A bordo de seu casamento multirracial, aproximaram-se dos Panteras Negras e do movimento negro, e militaram a favor da libertação das drogas e da libertação feminina. Compreendiam, algo intuitivamente, que para lutar de modo eficaz em prol de uma minoria específica, era preciso lutar por todas as minorias ao mesmo tempo.

“Essa bruxa japonesa enlouqueceu-o, ele passou-se”, reage um jornalista numa cena da época de "Os Estados Unidos Contra John Lennon" (2006), um documentário que procura explicitar os porquês de o governo republicano de Richard Nixon ter feito tudo para deportar John e Yoko dos Estados Unidos no início dos anos 70. À beira da cama-cenário do casal, outra jornalista acusava Lennon de “ridículo” e dizia que suas acções não tinham qualquer serventia para a paz. O desconforto do governo e a hostilidade de uma mídia igualmente bélica eram duas faces de outra moeda, feita de guerra & ódio, em tudo oposta à aliança John-Yoko.

Nessa fase, evidentemente, o artista não repetiu o sucesso de rocks de dez anos atrás, como "Love Me Do", "She Loves You" e dezenas de outros – e menos ainda a sua sempre experimental e áspera esposa. Mas não é pequena nem insignificante a galeria de rocks e baladas solo (ou melhor, divididas com Yoko directa ou indirectamente) nascidos nessa fase: "Mother" (1970), "Happy Xmas (War Is Over)", "Jealous Guy", "Oh Yoko!" (1971), "Woman Is the Nigger of the World" (1972, atenção para o título a um só tempo antirracista e antimisógino), "Mind Games" (1973)... Bem menos notados foram os álbuns de Yoko nesse mesmo intervalo, alguns deles excepcionais. “Dizem que sou cruel/ sim, sou uma garota cruel”, defendia-se ela das rejeições que vinham de todos os lados, em "Death of Samantha" (1973), no álbum, Approximately Infinite Universe.

Ambos, deixaram as gravações na segunda metade da década de 70, o que talvez demonstre quão indigesto era o seu discurso, fosse pelo lado mais “doido” de Ono ou pelo espírito pop de Lennon. Só em 1980 voltaram a lançar um disco, "Double Fantasy", que era assinado em dupla e continha preciosidades de um ("Just Like Starting Over", "Woman") e de outra ("Kiss Kiss Kiss").

E então o adolescente inconsequente dos Beatles foi assassinado.

Yoko, a mulher que o criou, continua por aí, aos 77 anos, fazendo arte, militância política, pacifismo e música.

De certo modo, John Lennon ainda está vivo, aos 70 anos, e na passagem do 30º aniversário do seu assassinato.


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