segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Tango, um pensamento triste, que se dança.

"Es (el tango) un pensamiento triste que se baila" - Enrique Santos Discépolo

Ao enlaçar sua parceira na pista de dança, não é a alegria que o move, nem a ele, nem a ela. Os passos felinos e o apuro duvidoso do par anunciam aos presentes um acontecimento quase que metafísico: bailarão um tango!

O dançarino por vezes nem tira o chapéu que lhe vai inclinado na cabeça. Um lenço qualquer lhe envolve o pescoço. Ela, bela, com os cabelos presos, rodopia numa saia justíssima, aonde se abre uma generosa fenda.

O ritmo sincopado e malevolente que escutam ao fundo é de um bandoléon soluçante, de um violino e de um piano. Executam então os dois o mais lascivo dos balés que se conhece. Se a melodia é chorosa, as letras, antigamente cantadas em lunfardo - o latim dos marginais portenhos - são heterogéneas e devastadoras. É a lírica de vidas destroçadas por traições e falsidades, por desilusões e crimes. Mulheres pérfidas e amigos traidores, são o sal da dramaturgia tanguista:

- "Mi china fue malvada, mi amigo era un sotreta".

É a estética de um mundo canalha e ressentido. E não é para menos. Filho do lupanar e do
bowling, da taverna da periferia de Buenos Aires, o tango nasceu no meio de duelos de garrucha e de punhais, travados nas sombras malditas do subúrbio, que lhe salpicaram os cueiros de pólvora e sangue. Teve como escola as então perigosas barrancas do Rio da Prata com seu intenso tráfico de carnes.
Atribuem-lhe, como à maioria dos bastardos, muitos pais, todos ilegítimos. Resultou ele de um curioso sincretismo: a milonga nativa, argentina pura, misturou-se de malgrado com as cantorias italianas, sicilianas e napolitanas, trazidas pelos milhares de imigrantes peninsulares "invasores", que chegaram a Buenos Aires há bem mais de um século atrás.

Não há entre os argentinos quem não palpite ou divague sobre o tango.
 
Juan Pablo Echegüe por exemplo só viu sexo nele, um retorço de obscenos. E não está longe da verdade. Afinal os parceiros são uns fingidos. Ele, em trajes de rufião, aparenta protegê-la quando de facto a explora. A bailarina não lhe fica atrás. Simula entregar-se por amor e não por medo.

Para E. Martinez Estrada, o grande ensaísta do Pampa, vê nele apenas automatismo, a robotização dos movimentos. O tango, assegura ele, é um "baile sem expressão, monótono, com o ritmo estilizado de um ajuntamento. Não tem, diferente das demais danças, um significado que fale aos sentidos, com uma linguagem plástica, tão sugestiva, ou que suscite movimentos afins no espirito do espectador, pela alegria, ou entusiasmo.
É um baile sem alma, para automatos, para as pessoas que renunciaram às complicações da vida mental e se recolhem ao nirvana. É deslizar-se. Baile de pessimismo, ....baile das grande planícies sempre iguais de uma raça esgotada, subjugada, que a percorre sem fim, sem um destino, na eternidade do seu presente que se repete. A melancolia provém dessa repetição, do contraste que resulta ver dois corpos organizados para os movimentos livres submetidos a uma fatídica marcha mecânica de animal maior." (Radiografia de la Pampa, 1933, pag.162)

Já Ernesto Sábato sente profunda candura pelo tango. "É uma sublimação", disse, "uma busca desesperada pelo verdadeiro amor. Nauseados pelo sexo mercenário, pelo proxenetismo descarado que os cerca, homem e mulher encenam, ainda que com arabescos eróticos, o que lhes ocorre ser, na sua imaginação de desesperados, uma autentica e pura paixão". Daí aquela seriedade ensimesmada dos bailarinos: En mi vida tive muchas, muchas minas, pero nunca una mujer!"- eis ai a utopia do tango: encontrar um amor genuíno.

A mistura entre o criollismo e o gringuismo - entre seus inventores encontra-se um Poncio e um Zambonini -, fez com que uns intransigentes, uns xenófobos, negassem sua natureza argentina. Não tinha para eles o aroma saudável do pampa. Ao contrário, o tango transpirava a perfume de mundana, a suor forte, carcerário, do compadrito mal encarado, gente estranha à verdadeira platinidade.

Não foi esta opinião de Jorge Luis Borges para quem a prova mais evidente e irrefutável do argentinismo do tango é que nenhum outro maestro, ou outro músico - em todos os cantos do planeta por onde escutou-se o lamento do seu acordeão - conseguiu despertar o mesmo sentimento que qualquer tanguero platino provoca.

A universalização do tango - imortalizado por Carlos Gardel nos anos vinte, seduzindo os bem-nascidos e chiques que tomaram-no como exemplo de elegância - assemelhou-se ao sucesso da valsa no século 19. Impressionante metamorfose. Como no conto de fadas, o sapo virou príncipe.

A opereta do bordel do arrabalde arrebatou o Teatro Colón. E não só isso! Perante esta maré montante que há anos nos assola, a do rock anglo-saxão - tribal, autista, ensurdecedor -, o tango, tão bem lembrado por Carlos Saura em seu filme Tango (1998), passou a ser a última esperança de um dançar civilizado na cultura ocidental."

By: Mestre Joca

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